18 fev Atenção Primária à Saúde
A Atenção Primária à Saúde (APS) é a porta de entrada da população no sistema de saúde, sendo responsável por levar os cuidados de saúde o mais próximo possível de onde as pessoas moram e trabalham. Ela se caracteriza por um conjunto de ações tanto no âmbito individual, quanto coletivo, que têm como objetivo rea-lizar: (1) a promoção da saúde, (2) a prevenção de doenças e seu diagnóstico e tratamento, (3) a reabilitação, (4) a redução de danos, e (5) a manutenção da saúde da população.
A APS deve ser acessível à população tanto em termos de ser de fácil acesso geográfico, quanto de oferecer horários de atendimento variados. Além disso, é preciso que ela satisfaça as necessidades de saúde mais relevantes do local. Essas necessidades podem ser médicas e também sociais, garantindo assim uma atuação regionalizada, contínua e sistematizada.
A APS é um pilar do sistema de saúde, pois organiza o atendimento e o fluxo de serviços nas redes de saúde. Cerca de 80% dos problemas de saúde da população podem ser resolvidos com a atenção primária, e os outros 20% são encaminhados para outros níveis de atenção, nos quais o paciente terá consultas especializadas ou um nível maior de suporte (como internação domiciliar) de acordo com o problema. É função da APS coordenar os serviços, sendo responsável pela navegação do usuário pelo sistema de saúde, garantindo diálogo entre diferentes áreas da saúde e a integralidade no serviço prestado.
Essa atenção deve ser longitudinal, ou seja, deve acompanhar os usuários ao longo do ciclo de vida, o que permite que sejam atendidos de forma mais eficiente quando uma nova demanda surgir. Para isso, claro, é necessário que exista não apenas um prontuário médico com as informações pertinentes ao atendimento daquele paciente, mas também que ele seja devidamente avaliado. Além disso, pressupõe-se que a população faça da APS uma fonte essencial e periódica na manutenção de sua saúde, mantendo fortes laços com o serviço, o que evidencia a necessidade dos municípios de corretamente identificar e acessar a população beneficiária.
Na prática, o modelo prioritário de atenção primária à saúde no Brasil é o programa Estratégia Saúde da Família (ESF), que rea-liza consultas, exames, vacinas e outros procedimentos nas diversas comunidades pelo Brasil. O ESF, cuja gestão é responsabilidade do município, é o maior programa de saúde comunitária do mundo e é bem avaliado pelos beneficiários. Seu sucesso se deve à efetividade no combate à mortalidade materno-infantil e no controle de condições sensíveis à atenção primária – aquelas doenças que podem ser facilmente resolvidas se atacadas preventivamente ou no início dos sintomas, em particular olhando para a população mais vulnerável. Uma característica importante do programa é o estabelecimento de uma equipe (a equipe de Saúde da Família – eSF) composta por diferentes tipos de profissionais, como médicos, enfermeiros, auxilia-res de enfermagem e agentes comunitários de saúde. Por meio da interação constante entre profissionais de diferentes categorias, o ESF é capaz de diminuir a pressão nos hospitais públicos e colocar o cuidado integral do usuário como base. Além disso, cada eSF deve ser responsável por, no máximo, 4.000 pessoas, sendo a média recomendada de 3.000, res-peitando critérios de equidade para que comunidades mais vulneráveis tenham atenção especial.
Principais Desafios
Apesar de termos avançado na cobertura da população na atenção básica a nível nacional, passando de 61.5% da população coberta em 2008 para 75.4% no início de 2020, ainda falta resolutividade à atenção básica, o que agrava os problemas de saúde da população e gera óbitos e doenças que poderiam ser prevenidos. Por exemplo, pelo menos 40% das internações nas regiões Norte e Nordeste derivam de condições sensíveis à atenção básica, acima da média nacional de 35%˝. Algumas das causas para essa baixa eficácia são:
— Ausência de padronização nos fluxos de acolhimento, atendimento e protocolos, que influencia a qualidade do cuidado;
— Quando existem, há baixa aderência a protocolos por parte das equipes da APS;
— Muita diferença entre o procedimento de cuidado de cada nível de atenção e o usuário do SUS, o que gera sobrecarga nos níveis de média e alta complexidade.
Além disso, outros gargalos podem ser identificados, como o déficit de profissionais de saúde (que chega a 0.3 profissionais de saúde por mil habitantes em municípios com até 5 mil habitantes), a grande variação na produtividade desses profissionais (que vai de 12% a 100% da produtividade potencial), a ineficiência na gestão de contratos, e a ausência de uma rotina de planejamento (com monitoramento, acompanhamento e avaliação recorrente de projetos).
O acesso à atenção primária é também uma política que agrava ou re-duz desigualdades. A oportunidade de ter cuidados de saúde de qualidade pode gerar redução na mortalidade materna, fetal e infantil, principal-mente entre mulheres de baixa escolaridade e pretos e pardos. As consequência vão além dos indicadores de saúde, afetando também a oferta de trabalho de adultos e impulsionando a matrícula escolar.
Como fazer o diagnóstico?
Para fazer o diagnóstico do seu município, é importante acessar os principais dados de saúde para entender onde são as maiores falhas do sistema. Indicadores importantes a se considerar incluem:
— Número de equipes e cobertura do ESF no município;
— Número de visitas de Agentes Comunitários de Saúde per capita;
— Número de clínicas da família;
— Indicadores de saúde de mulheres e crianças (indicadores de aleitamento materno, por exemplo).
Onde encontrar os dados?
DATASUS
Diversos indicadores do SUS, incluindo o uso de recursos federais do SUS por municípios.
Coronacidades
Número de casos do coronavírus em municípios brasileiros por dia. Publicam guias sobre como coordenar a atenção básica em saúde durante a pandemia.
Painéis de Indicadores da Atenção Primária (SAPS)
Visualização e aquisição de dados sobre a cobertura populacional pelas equipes de saúde na Atenção Básica (AB) e vinculadas às Equipes de Saúde de Família (ESF).
IBGE Cidades
Dados de saúde por municípios, como acesso a serviços de saúde, morbidade, notificações de dengue, mortalidade infantil, internações por diarréia, entre outros.
Brasil.io
Disponibilizam uma base de dados com a série histórica de casos de COVID e óbitos confirmados por município.
SISREG (Ministério da Saúde)
Os cidadães realizam atendimento primário nas unidades de APS e os médicos solicitam procedimentos através do sistema Sisreg, que gerencia dados de todos os pacientes. A partir disso, as unidades hospitalares têm como acessar os dados dos pacientes cadastrados e realizar o controle de suprimentos e leitos distribuídos pela cidade.
Como enfrentar esse problema?
Para lidar com esses obstáculos, a provisão de serviços de saúde deve ser a mais coordenada possível dentro do município, e não fragmentada em entidades independentes respondendo a pressões, incentivos e contratos desalinhados. A agenda Saúde na Cidade, coordenada pelo IEPS, Impulso e Instituto Arapyaú, mapeia diversas propostas como soluções para os principais problemas na atenção primária.
Aumentar a resolutividade da APS implica em garantir a infraestrutura fundamental para aumentar a cobertura e a qualidade dos serviços, reduzindo mortalidades evitáveis. É necessário um mapeamento rigoroso da população a ser atendida em cada região do município para que se possa reorganizar os recursos físicos, humanos e financeiros de acordo com as necessidades de cada região.
Outro aspecto importante para melhorar a resolutividade é mitigar barreiras de acesso, implementando agendamento de consultas de modo não presencial e incorporando consultas remotas via telessaúde quando adequado. Finalmente, as equipes também devem dispor de equipamentos apropriados para realizar o atendimento e diagnóstico do paciente logo de início, sem precisar encaminhá-lo a outro nível de atenção da saúde desnecessariamente.
Considerando a continuidade do cuidado a longo prazo, uma das principais características da APS, o município precisa comprometer-se em desenhar estratégias de monitoramento para possibilitar análises rigorosas e garantir que o conheci-mento seja facilmente disseminado a outros níveis do sistema de saúde. Um problema frequente é a falta de unificação entre os sistemas de informação de saúde coexistentes no município, como quando o município possui sistemas diferentes para cada bairro ou região. Isso acarreta em duplicações e inconsistências nos dados, e dificulta o conhecimento da trajetória dos usuários para que sejam atendidos de forma mais eficiente.
Além disso, os gestores devem estabelecer indicadores prioritários a serem acompanha-dos de forma contínua para facilitar a avaliação de sua evolução por um painel de controle. Um monitoramento ativo permite a rápida identificação de doenças e problemas de saúde reemergentes a nível de comunidade, que possibilita um trata-mento mais eficaz e que não sobrecarregue o sistema de saúde.
Por fim, para enfrentar os principais problemas na atenção primária à saúde, é preciso também instituir políticas de promoção à saúde, e não apenas curativas. Essas estratégias são importantes para mitigar aspectos socioeconômicos de saúde e para reduzir a prevalência dos principais fatores de risco (alimentação, sedentarismo, alcoolismo e tabagismo), não apenas na mudança de comportamentos individuais, mas também no controle de ambientes (por exemplo, assegurando a proibição de fumo em locais coletivos fechados). As políticas de promoção à saúde devem ser intersetoriais, integrando as secretarias relevantes e incluindo campanhas de comunicação bem pensadas e planejadas com base em dados e evidências técnicas e científicas.
COVID
A crise epidemiológica do Covid chama atenção para a oportunidade de usar a capilaridade territorial do sistema e fazer uso da função de vigilância comunitária da APS. O sistema teria hoje capacidade de levantar em primeira instância indicadores pre-coces do aparecimento de surtos de doenças de interesse sanitário, como o Covid. No entanto, na prática essa função de vigilância não se efetiva, quer por falta de protocolo de notificação, quer por falta de sistema de monitoramento da informação levantada.
Em termos de contenção e mitigação de epidemias, há uma grande ineficiência e subutilização do potencial da APS. Por exemplo, a APS poderia ter um papel relevante no mapeamento prospectivo e retrospectivo de conta-tos de casos confirmados e suspeitos de covid. O foco majoritário na atuação via tratamento e acolhimento como primeiro ponto de contato com o sistema, ignora que há outras frentes de atuação possíveis. Considerando o contexto de reabertura de atividades, políticas de testagem e rastreamento podem ser chave para manter os números de casos sob controle.
Há um desafio, porém, quanto à qualificação dos agentes da APS. Uma pesquisa mostrou que mais de 60% dos agentes de saúde não se sentiam preparados para atuar na pandemia. Isso é particularmente preocupante pois os agentes de saúde são os responsáveis por levar instruções para lugares com maior dificuldade de acesso à informação. Além disso, menos da metade dos profissionais receberam equipamentos de proteção individual contra o COVID para poder interagir com a população e quase 80% não receberam treinamento para atuarem durante a pandemia.
Que políticas os municípios podem implementar?
1. Exemplos de Políticas Públicas
a. Reorganização do Sistema
Reforma da atenção primária a saúde (Rio de Janeiro)
O município do Rio de Janeiro iniciou uma reforma no seu sistema de saúde em 2009 com a implementação de um novo modelo de governança e de suporte administrativo das unidades municipais. Essa reforma compreendeu uma expansão dos serviços a partir das áreas de vazio sanitário mais carentes, com a construção de Clínicas da Família, remodelação de unidades básicas de saúde (UBS) antigas, implantação de sistemas interligados de informação nas unidades, uniformização dos protocolos clínicos, ampliação de vagas para residência em saúde da família, e recrutamento de gestores qualificados. A cobertura da Estratégia de Saúde da Família (ESF), que era aproximadamente 7% no final de 2008, chegou a quase 65% de cobertura no final do ano de 2016.
PLANEJAMENTO PARTICIPATIVO (MATO GROSSO)
No município de Apiacás (MT), foram desenvolvidas ações de planejamento participativo que deram aos moradores maior voz nos processos de decisão na área de saúde. Esse planejamento ampliou o número de Equipes de Saúde da Família e possibilitou um aumento na cobertura de exames laboratoriais e ampliações da Relação Municipal de Medicamentos. Como resultado, o Apiacás passou a apresentar melhores resultados nos indicadores de saúde como mortalidade infantil, cobertura da atenção básica, parto normal, cobertura vacinal e número de óbitos prematuros por doenças crônicas não transmissíveis.
b. Mitigação de Barreiras ao Acesso
Núcleo de Telessaúde SC (Santa Catarina)
O telessaúde é uma ferramenta de articulação entre Atenção Primária (AP) e Atenção Especializada (AE), cujo principal objetivo é fortalecer a Atenção Básica ao investir no protagonismo das equipes, ampliando a resolutividade e reduzindo os encaminhamentos. Sua articulação com o município de Joinville em 2016 culminou na implantação de fluxo obrigatório de teleconsultoria antes do encaminhamento à ortopedia, o que promoveu uma redução de 78% na fila de espera para a primeira consulta (de 13 meses para 2 meses). Além disso, o auxílio da teleconsulta fez com que, em média, 75% dos casos fossem resolvidos diretamente na atenção primária, com uma queda de 50% dos encaminhamentos da ortopedia geral para outras especialidades da área.
c. Criação de Políticas de Promoção à Saúde
Projeto "Apetite por Saúde" (Mato Grosso do Sul)
O projeto foi uma ação coordenada entre os Núcleos Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (NASF-AB) e de equipe de Saúde da Família de Dourados (MS) visando a promoção do controle e perda de peso e prevenção de doenças crônicas através da reeducação alimentar. Os grupos se reuniam semanalmente durante 15 semanas para discutir alimentação e nutrição, importância das práticas corporais, ansiedade, problemas emocionais ligados à alimentação, orientação odontológicas, entre outras temáticas.
2. Marcos Importantes
Portaria nº2.436/2017
Estabelece a Política Nacional de Atenção Básica, com a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica no âmbito do SUS.
Portaria nº2.713/2020
Instaura o novo regime de pagamento por desempenho na Atenção Primária à Saúde, estabelecendo o método de cálculo do valor do incentivo financeiro federal de custeio do pagamento por desempenho, no âmbito do Programa Previne Brasil, que, por sua vez, alterou algumas formas de repasse das transferências para os municípios em 2019.
3. Marcos Importantes
Atenção Primária
Um estudo recente analisou a reestruturação do sistema público de saúde, que desde a criação do SUS se afastou de serviços centralizados em hospitais e avançou em direção a expansão da atenção primária à saúde. Os resultados mostram que esse movimento levou ao aumento do acesso a cuidados primários, atendimento domiciliar por profissionais com ensino superior, e uma mudança de atendimento ambulatorial de especialistas para clínicos gerais. Tais mudanças geraram um aumento nas consultas de pré-natal e uma redução na mortalidade materna, fetal e infantil, principalmente entre mulheres de baixa escolaridade. Esse estudo também demonstra que a universalização do acesso à saúde pode sim ser custo-efetivo, mesmo em países com baixa capacidade estatal.
c. Criação de Políticas de Promoção à Saúde
O programa Estratégia de Saúde da Família (ESF) foi responsável por reduzir a mortalidade e, em municípios pobres, aumentar a oferta de trabalho de adultos, diminuir fertilidade e impulsionar a matrícula escolar, de acordo com outros estudos. As evidências sugerem que o ESF é uma ferramenta altamente custo.efetiva para melhorar a saúde de municípios relativamente pobres. Há evidências também de que a expansão da ESF pode gerar uma redução maior de mortalidade para pretos e pardos do que para brancos através da redução de mortalidade em doenças infecciosas, deficiências nutricionais e anemia, diabetes e doenças cardiovasculares. Finalmente, um outro estudo que analisou o ESF viu uma queda de 6.8% nas taxas de mortalidade sensíveis à atenção básica quando o aumento da cobertura foi de 0% para 100%. A diferença foi ainda maior para municípios com alto desempenho em governança local, o que sugere que o fortalecimento da governança de saúde local pode sr vital para melhorar a eficácia dos serviços em um sistemas descentralizados de saúde.
Qual o papel das vereadoras na APS?
Um exemplo de atuação do legislativo e participação popular no que se refere à APS ocorreu na cidade do Rio de Janeiro. Nesse caso, a instituição do terceiro setor MEU RIO iniciou uma campanha pela aprovação do projeto de lei do vereador Carlos Eduardo (Solidariedade), que exigia maior transparência e acessibilidade de dados sobre saúde por meio da disponibilização da fila do Sisreg na internet.
Antes da pressão popular e posterior aprovação da lei, os cidadãos e cidadãs não poderiam checar em que posição da fila de cirurgias eles estavam. Isso, por sua vez, permitia que furos de fila por indicação política/patronagem ocorrem, prejudicando o mecanismo do controle e transparência por parte do legislativo e da sociedade civil.
Portanto, é dever da vereadora eleita estruturar projetos de lei com participação popular visando aumentar a transparência de dados do seu município evitar a captura de interesses políticos e religiosos na gestão pública.
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