18 fev Primeira Infância
Chamamos de primeira infância o período entre o nascimento e os 6 anos completos de vida da criança. É nessa época em que seu cérebro se desenvolve mais rapidamente e ocorrem ganhos cognitivos, afetivos e motores que podem influenciar seu desempenho futuro. James Heckman, vencedor do Nobel de Economia (2000), afirma que quanto mais cedo investimos em capital humano, maior é o retorno tanto para a criança, quanto para a sociedade, já que essas políticas são eficazes para quebrar o círculo da pobreza e promover mobilidade social, além de reduzir a criminalidade e gastos com assistência social.
Um dos principais desafios na primeira infância é garantir que todas as crianças tenham acesso a educação, cuidado integral, saúde, nutrição, saneamento, lazer, cultura e proteção contra violência, de modo a contribuir para o seu desenvolvi-mento pleno logo no início da vida, tal como consta na Constituição. É uma meta difícil, principalmente por depender da cooperação de seto-res distintos dentro do município.
O Brasil tem uma população infantil razoavelmente grande. Em 2018, eram quase 16 milhões de crianças com idades entre 0 e 5 anos, das quais pouco mais de 55% estavam matriculadas em creches ou pré-escolas. Em números absolutos, isso significa que mais de 7 milhões de crianças estão fora do sistema de educação inicial. Os motivos são diversos:
— Há desconhecimento sobre a importância de educação adequada na primeira infância;
— Faltam vagas para atender todas as famílias que buscam a rede pública;
— Não há oferta de creches ou pré- escolas próximas às residências;
Isso é de extrema importância quando consideramos que 30% das crianças até os 6 anos são beneficiadas pelo Bolsa Família, e que essas falhas deixam desamparadas as que mais precisam de atenção, estímulo e cuidado adequado.
De fato, num país extremamente desigual, a diferença entre os segmentos da população com mais e menos renda é considerável. A taxa de atendimento em creches para os mais pobres é de menos de 30%, enquanto entre os mais ricos mais de 50% das crianças de até 3 anos frequentam a creche. Em relação à pré-escola, por ser um segmento obrigatório desde 2009, a provisão chega mais próxima à universalização pretendida pelo governo, mesmo que ainda haja diferenças por renda (93% dos mais pobres vão à pré-escola, frente a 98% dos mais ricos). Uma discrepância mais preocupante, porém, é a regional: mais de 15% das crianças em fase de pré-escola na região Norte não estão matriculadas.
Por um lado, as políticas públicas devem atuar em conjunto com as famílias, uma vez que há evidência de que a escolaridade da mãe e a relevância das informações acessadas pela família são determinantes importantes do desenvolvimento da criança. Por outro lado, para além de prover os serviços através de ampliação da rede, as políticas devem focar também na qualidade. Por exemplo, em 2016, apenas 43% das creches e 30% das pré-escolas possuíam rede pública de abastecimento de esgoto.
Um dos maiores desafios para a implementação de políticas de primeira infância efetivas é a intersetorialidade. Se os profissionais das diferentes Secretarias municipais não dialogam para buscar interseções entre suas áreas de conhecimento, existe o risco da superespecialização de políticas setoriais desviarem o olhar do conjunto e não compreenderem como as partes se complementam. Podem, por isso, fazer um diagnóstico equivocado e oferecer um atendimento inadequado.
Todos os problemas mencionados acima são realçados com a pandemia, que afeta fortemente a educação infantil em vários níveis. Primeiro, há o desafio do difícil acesso a pré-escolas e creches durante esse período. Além disso, ainda há falta de preparo e de tecnologias apropriadas para os pais que precisam trabalhar enquanto cuidam das crianças em casa. O aumento do desemprego (mais acentuado para minorias) e da violência doméstica também contribuem para mudar ainda mais as relações dentro de casa e afetar o nível de estresse e ansiedade das crianças, prejudicando seu desenvolvimento psicológico. Por fim, a oferta reduzida de creches e pré-escolas particulares pode pressionar o sistema público no próximo ano letivo, visto que a estimativa é de que até 80% das instituições privadas de educação possam fechar as portas com a crise.
Como fazer o diagnóstico?
Para fazer um diagnóstico do seu município, é importante entender o que já vem sendo feito e os problemas que ainda restam. A Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV) oferece diversos materiais para gestores sobre como pensar e implementar programas focados na primeira infância. Dentre esses materiais estão os Planos Municipais de Primeira Infância (PMPI), recomendados pelo marco legal da Primeira Infância.
O objetivo de um PMPI é estabelecer metas e complementar as ações de diferentes setores da administração municipal para criar políticas verdadeiramente integradas. Verifique se seu município já tem um PMPI e avalie sua composição: que políticas já existem com foco na primeira infância? Quais dos problemas levantados acima elas pretendem resolver? Quais problemas o plano municipal ignora e quais são os mais urgentes? Confira o box abaixo para entender onde buscar dados específicos do seu município e aplicá-los ao PMPI!
Onde encontrar os dados?
Painel Educação Já Municípios
Importante retrato da rede pública de educação por município, em termos de dimensão (número de estudantes, professores, diretores), recursos humanos (formação e seleção de professores e diretores), recursos financeiros (recursos totais e do Fundeb) e resultados educacionais (taxa de alfabetização, Ideb, taxa de abandono). Conta também com uma série de propostas para educação elaboradas pelo Educação Já!
Plataforma Primeira Infância Primeiro
Reúne 33 indicadores de saúde, nutrição, segurança e proteção, parentalidade, e educação infantil, além de da-dos demográficos muitas vezes à nível de CEP. É uma ótima fonte para dar início ao seu diagnóstico municipal, e que conta também com recomendações para cada município.
Observatório do PNE
Contribui com monitoramento de diversos indicadores dos vários níveis de educação nos municípios brasileiros, gerando um dossiê personalizado para o seu município.
Observatório do Marco Legal da Primeira Infância
Mostra indicadores de assistência social, educação e saúde para ajudar a pensar a primeira infância de modo intersetorial, além de gerar um relatório de diagnóstico personalizado para o Município. No site, é possível também descobrir se o seu município possui um Plano Municipal para Primeira Infância e acessá-lo.
Índice Município Amigo da Primeira Infância (IMAPI)
Utiliza indicadores relacionados à oferta de políticas públicas, ações, serviços e práticas familiares voltadas ao desenvolvimento infantil, traduzindo os cinco domínios do modelo de Nutrição de Cuidados recomendado pela UNICEF.
Como enfrentar esse problema?
Existem diversas frentes nas quais os municípios podem atuar para colocar a primeira infância como uma das prioridades da gestão. Primeiro, entender que é preciso pensar em políticas públicas intersetoriais integradas, e olhar a oferta de creches e pré-escolas, por exemplo, não apenas como local de ensino, mas também como garantia de uma alimentação saudável, desenvolvimento psicomotor, vacinação em dia, e segurança para as crianças. Essa intersetorialidade é um dos principais desafios, pois requer coordenação e diálogo com um número muito maior de secretarias, mas também garante que a atenção à criança seja mais profunda, qualificada, eficiente e eficaz.
Boa Vista (RR), considerada a capital da Primeira Infância, é um bom exemplo neste âmbito: elaborou e executou de forma integrada seu projeto municipal para primeira infância de modo que as áreas se complementam. Assim, um bom ponto de partida é a prefeitura tomar a inciativa de convocar as Secretarias municipais para formularem juntos um política intersetorial. Instituindo uma sistemática de reuniões de planejamento, acompanhamento e avaliação da política intersetorial no gabinete da Prefeita, por exemplo, é possível garantir que haja espaço para implementação de políticas exitosas.
Tratando ainda de intersetorialidade, devemos ressaltar a importância componente de Saúde. Além de promover políticas educacionais de creches, é necessário também focar na atenção pré-natal e no acompanhamento de saúde nos primeiros anos de vida, como nutrição e vacinação. O período de maior plasticidade do cérebro humano inicia-se ainda na gestação. Assim, as melhores práticas de atenção na primeira infância devem dar apoio aos pais desde o início da gravidez. Além disso, os profissionais de saúde são aliados importante, uma vez que são eles que identificam os primeiros sinais de déficits de desenvolvimento nos primeiros anos de vida.
Em termos programáticos de Educação, é necessário que haja oferta adequada e de fácil acesso a creches e pré-escolas tanto pelo setor público, como também possivelmente através de convênios com creches comunitárias ou filantrópicas. Essa assistência, que é direito na Constituição, impacta também a situação dos responsáveis, em sua grande maioria mulheres, que precisam se reinserir no mercado de trabalho após o nascimento dos filhos e que não teriam com que deixá-los.
Para além da oferta, os municípios devem também garantir a qualidade dessa educação, entendendo que os investimentos na primeira infância alimentam os de fases posteriores, e que uma falta de preparo para atender adequadamente crianças em situação de desvantagem nessa idade prejudica seu desenvolvimento e perpetua a desigualdade. De acordo com o Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais (CEIPE FGV), existem elementos que estão quase sempre presentes em programas de alta qualidade:
— Currículo apropriado para o desenvolvimento infantil, que aborda a criança como um todo e é implementado com eficiência, contendo práticas pedagógicas alinhadas à Base Nacional Comum Curricular (BNCC);
— Apoio individualizado e atividades adequadas para o estágio de desenvolvimento de cada aluno;
— Investimento na preparação e formação continuada dos professores de educação infantil;
— Sistema de avaliação que considere tanto o aprimoramento da infraestrutura da escola, quanto o progresso acadêmico, socio-emocional e físico das crianças.
Como muitos dos cuidados até os 6 anos de idade estão sob responsabilidade da família, e atentando-se ao fato de que 7 milhões de crianças ainda não estão no sistema de educação inicial, é importante que as políticas de primeira infância abordem as condições de desenvolvimento da criança também dentro de casa. Políticas de parentalidade focadas em pais com maior vulnerabilidade social são indispensáveis para reduzir a desigualdade de informação, de modo a estimular a prática efetiva de certos cuidados com a criança, promover o fortalecimento de vínculos e oferecer acesso a serviços públicos.
Sem cuidadores, não há infância: para priorizar a infância, é necessário oferecer proteção também às famílias. Vários municípios, alguns antes do Criança Feliz mas muitos raças a ele, já adotaram programas de visitação domiciliar, nos quais profissionais treinados visitam as famílias com uma certas regularidade para disseminar conhecimento para os responsáveis, entender suas realidades, e acompanhar o desenvolvimento das crianças durante essa fase.
Que políticas os municípios podem implementar?
Primeira Infância Melhor (PIM) (Rio Grande do Sul)
Visitas domiciliares e comunitárias semanais e famílias em situação de risco e vulnerabilidade social. A iniciativa é alvo de monitoramento constante e as avaliações apontam que os pais se tornaram mais presentes na vida escolar de seus filhos, além de ter sido observada uma redução na vulnerabilidade para aprendizagem – especialmente entre meninos e crianças filhas de mães com baixa escolaridade. Uma grande referência em política intersetorial foi desenvolvida em 2003 e tornada Lei Estadual (12.544) no Rio Grande do Sul em 2006. Como pioneiro no Brasil, o PIM foi um dos modelos de inspiração para o Criança Feliz, iniciativa do Governo Federal e o maior programa em escala do mundo como foco na promoção do desenvolvimento das crianças que estão na primeira infância.
São Paulo pela Primeiríssima Infância (São Paulo)
Objetiva qualificar o atendimento a gestantes e promover o desenvolvimento de crianças do nascimento até os 3 anos de idade. Lançada em 2009 e presente em mais de 40 municípios, a iniciativa desenvolveu o Índice Paulista da Primeira Infância (IPPI), responsável por mapear como os municípios do estado promovem o desenvolvimento infantil e revelar onde estão os bons resultados. No setor de educação, por exemplo, consideram-se variáveis como número de matrículas em creches e pré-escolas.
O Programa AGAPI - Arapiraca Garante a Primeira Infância (Alagoas)
Lançado em 2013, o programa objetiva o fortalecimento dos laços familiares, cuidado com gestantes, recém-nascidos e crianças do município de Arapiraca. O pograma se fortalece na figura de profissionais como enfermeiros que atuam como articuladores para a construção e fortalecimento das chamas Redes de Atenção à Saúde.
Mais Infância (Ceará)
Criado em 2015, o programa promove o desenvolvimento infantil e fortalece o vínculo entre as crianças e suas famílias em 184 municípios cearenses. Trata-se de uma iniciativa multissetorial, formada por quatro pilares: Tempo de Nascer, focado no cuidado materno-infantil para evitar a morbidade de gestantes e recém-nascidos; Tempo de Crescer, baseado na construção de uma rede de fortalecimentos de vínculos familiares; Tempo de Brincar, estruturado tendo em vista os benefícios para o desenvolvimento das crianças; e Tempo de Aprender, que se refere à educação infantil.
São Paulo pela Primeiríssima Infância (São Paulo)
Política pública da Prefeitura Municipal de Boa Vista (Roraima) que dá atenção especial às famílias durante a primeira infância, integrando os principais serviços necessários para mães e filhos. Ele assegura de uma só vez marcação e acompanhamento de todas as consultas, exames e procedimentos médicos, e efetiva matrículas em creches e pré-escolas antes mesmo do nascimento da criança, além de oferecer enxoval, e vale transporte para os pais. Na sede do FQA, gestantes e novas mães recebem informações sobre desenvolvimento infantil e participam de oficinas de artes e música com as crianças. Atualmente atende quase 8.000 beneficiários, e foi reconhecido em 2014 como exemplo de política integrada para a primeira infância.
Evidência de Impacto
Visitas Domiciliares
Em diversos países, programas de visitas domiciliares voltados à primeira infância têm se mostrado efetivos. Na Jamaica por exemplo, um programa de visitas semanais, de uma hora de duração, para crianças de até 2 anos de idade teve grandes impactos no desenvolvimento cognitivo da criança e na sua renda futura (20 anos depois). Aos 22 anos, aqueles que fizeram parte do programa tinham, em média, 0,6 anos adicionais de educação, e a proporção de jovens que ainda estavam estudando em tempo integral era 5 vezes maior, além de terem uma renda 25% mais alta quando comparados ao grupo que não faz parte do programa. Esse mesmo programa foi implementado na Colômbia para crianças entre os 20% mais pobres da população, e teve impacto considerável no desenvolvimento cognitivo das crianças nas classes socioeconômicas mais baixas.
Creches e Pré-Escolas
Efeitos sobre alunos: na América Latina, encontramos dois arranjos principais: creche e pré-escolas no sistema público de ensino; e arranjos comunitários em que mulheres da comunidade oferecem creches em suas próprias casas. Diferentes estudos sobre educação infantil em países da América Latina apontam que, no geral, ambos podem trazer efeitos positivos para o desenvolvimento infantil tanto em aspectos cognitivos, quanto em motores e comportamentais. Um dos maiores estudos sobre o assunto, o Perry Preschool Project, inseriu crianças de 3 a 5 anos de idade de baixa renda na pré-escola. Aos 27 anos, os alunos que participaram do programa apresentavam um índice de emprego duas vezes mais alto, um índice de conclusão de ensino médio um terço maior, 40% menos criminalidade e 40% menos casos de gravidez precoce do que aqueles que não frequentaram a pré-escola. Avaliações mais recentes, no entanto, vêm encontrando efeitos menores, possivelmente fruto de uma melhora generalizada nas condições de vida de muitas famílias desde o estudo na década de 60. É importante notar também que estudos que olham para o impacto de programas mais amplos (como oferta de creches e pré-escolas) podem encontrar efeitos adversos expressivos para filhos de mães com pouca escolaridade, o que parece estar atrelado à qualidade e indica que o sistema de educação infantil brasileiro pode estar aumentado desigualdades ao invés de resolvê-las.
Qualidade da Creche
Garantir vagas na educação infantil não é suficiente para melhorar o desenvolvimento infantil. Mais relevante do que o acesso a creches e pré-escolas é a qualidade de rede educacional. Estudos apontam que a qualidade da creche tem um impacto considerável particularmente sobre a idade mental e o desenvolvimento social da criança, que são aproximadamente 2 meses maiores em creches de alta qualidade. Em termos de fatores específicos que afetam a qualidade das atividades e estrutura do programa, como por exemplo uso informal da linguagem e de livros e figuras, atividades de psicomotricidade, atividades criativas (como arte, música, faz-de-conta), e um programa de atividades diárias.
Efeitos Sobre Mães
Para além dos benefícios para as crianças, as creches são fundamentais para as mães. Em primeiro lugar, elas aumentam as chances das mães se manterem no mercado de trabalho, o que impacta diretamente a renda da família. No Quênia, por exemplo, um programa de creches subsidiadas pelo governo aumento consideravelmente a probabilidade de ter empregos das mães, conseguindo diminuir a disparidade de oportunidades entre homens e mulheres no mercado de trabalho. Os benefícios de se ter mais mães no mercado de trabalho mais do que pagam o custo do programa, de modo que esta parece ser uma política extremamente eficiente. Para além do trabalho, as creches dão a oportunidade para as mães terem mais tempo de lazer.
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